De alguma forma essa frase passou a ser minha (ou “o mais de alguém” que algo como uma frase pode ser). Essa de “você vai perder alguns domingos”. A parte mais curiosa e talvez a que me deixa um tanto quanto culpada (?) é que ela nem é minha mesmo. Até é, assim, médio. Ela enquanto caracteres organizados em forma de sentença é minha, mas o conceito dela eu aprendi de outra pessoa. Tem uns bons anos, eu ainda estava na graduação e ainda me importava muito com coisas como notas, títulos e essas coisas, sabe? A bem da verdade, lá no fundo, eu ainda me importo, mas eu finjo com muita força todo dia que não, para ver se eu equilibro o destroço que fizeram comigo na escola. Um dia vou acabar acordando e não me importando mesmo, vocês vão ver.
Mas, voltando.
Quando eu ainda estava na graduação e sequer me importava em fingir que não me importava muito com esses pedaços de nada que atribuem para as pessoas quando elas chegam em algum lugar, eu conheci um rapaz que tinha muitos desses pedaços. Muitos mesmo. Primeiramente, ele estava no mestrado, segundamente, ele tinha acabado de ganhar uma bolsa que, me disseram, era dificílima de conseguir, para fazer seu doutorado no exterior. Até onde eu tinha vivido, aquela era minha representação de sucesso. Ele ainda era gente boa. Certo dia eu criei coragem e, sem nem saber como organizar muito bem o que eu queria saber, fiz uma pergunta que nem me lembro como era exatamente, mas deve ter sido algo como “como você conseguiu?”. Perguntei, embevecida, esperando talvez um mapa? Um manual? Um itinerário? Eu lembro bem que estávamos os dois de frente para a impressora, que ia e vinha e com aquele som repetitivo. Ele respirou fundo, pensou um pouco e me disse sorrindo como quem havia tentado brevemente mesmo desenhar um mapa ou um roteiro para mim, mas que acabou optando por uma resposta genérica e sincera, que, essa sim, por alguma razão, eu lembro bem das palavras:
— Eu perdi alguns domingos, viu?
A impressora terminou o seu trabalho, ele juntou os papéis, chegou a minha vez e o rapaz me deixou com um aceno de cabeça e aquela frase que dizia nada e tudo ao mesmo tempo. Naquele tempo, eu teria optado pelo mapa, hoje, eu sei que o que ganhei foi infinitamente mais valioso: a verdade. A verdade que, muitas vezes, não tem mapa nenhum, só uma resistência absurda à frustração que é esperar coisas que levam tempo. Aquela frase dita tão despretensiosamente — e foi, mesmo, juro, não teve tom nenhum de lição de moral, essa parte foi eu romantizando tudo, como sempre — mudou a minha vida. Mas, não se engane, esse texto não é nem de longe uma ode à meritocracia ou ao esforço, duas palavras que eu detesto. Esse texto é só uma história. É só um recorte da minha vida que não é manual para nada, nem para mim. Esse texto é só uma história que eu quero contar.
Esse desabafo mudou minha vida porque eu achava que sabia o que queria e precisava, que era chegar em alguns lugares que iriam me garantir aqueles pedaço de nada. E olhares desatentos podem pensar que foi exatamente o que aconteceu, mas não foi. Ironicamente, recentemente, eu mesma ganhei uma bolsa para estudar um tempo no exterior e se você ler isso aqui rápido demais ou sem prestar atenção sobretudo ao que eu vou dizer a partir de agora, pode cair na esparrela de achar que esse tipo de coisa aconteceu comigo e acontece com pessoas que merecem porque elas perderam alguns domingos. Por favor, não repita meu engano de aluninha-do-terceiro-semestre-recém-saída-de-uma-dessas-escolas-que-penduram-medalhas-e-pedaços-de-nada-que-elas-mesmas-atribuem-significado (a minha própria versão de Jogos Vorazes). Não. Essa história mudou a minha vida porque enquanto eu repetia para mim mesma “você vai perder alguns domingos! Você vai perder alguns domingos…” nos domingos que eu perdia, eu descobri pelo que valia a pena viver. E morrer. Eu sempre fiz questão de deixar as janelas bem abertas para não perder de vista os dia de sol indo embora. Para ver as crianças brincando lá fora e, nos momentos de distração, ter a chance de muitas, muitas mesmo, inúmeras vezes, dizer “quer saber? Isso aqui não vale não. Hoje eu vou brincar lá fora!”, me levantar de forma dramática e ir mesmo. Dane-se o que tinha que ser feito!
E tantas outras vezes eu fiquei. E tantas vezes eu ouvi com inveja a risada das crianças ao longe. Porque às vezes… Às vezes importava muito ficar. Às vezes, perder valia muito.
A história mudou minha vida não porque escreveu um mapa em pedra para mim. Mesmo que eu tenha tentado. Obrigada, meu Deus, por me salvar de mim mesma. A história mudou minha vida porque eu tive a chance de descobrir que perder alguns domingos não é perder todos os domingos. Eu não aguentaria perder todos. E pouquíssimas coisas valem mais do que um domingo de sol bem vivido (ou de chuva, se você preferir). A história mudou minha vida porque me ajudou a filtrar o que era importantíssimo, crucial, eu diria, na minha história, do que era absolutamente supérfluo. Como me arrependo dos domingos perdidos por coisas que perderam completamente a importância tempos depois, coisas que sequer lembro aqui para dar de exemplo! Que dor terrível pensar em todo o sol que perdi me dedicando ao desnecessário, ao que não mexe nas minhas vísceras, ao que me disseram que era importante e eu, tola, acreditei! Por outro lado, que bem vividas as horas perdidas diante do que eu descobri que era importante por mim mesma, do que não precisou ninguém me dizer. Que prazer intangível perder o domingo porque eu quis, porque eu mesma me mandei e sem me distrair com o sol lá fora porque sequer vi o dia passar. Porque aí, nessas horas, a gente percebe que o dia acontece mesmo é dentro da gente. Bem quando a gente esbarra no que dá sentido à nossa vida, faça chuva ou faça sol.
[…]
(Quer saber do pior? Soube outro dia que o rapaz que mudou minha vida chegou no exterior, se apaixonou, casou, largou a pesquisa e nunca mais voltou pro Brasil. Dá para acreditar? Tantos domingos perdidos pra isso… Mas, assim, eu achei o máximo. História de um livro que eu adoraria escrever: Romance? Propósito? Destino? Longe de mim achar que não valeu a pena. Romântica que sou, capaz de ter feito o mesmo no lugar dele. Mas partezinha de mim fica aqui pensando numa máquina do tempo em que eu sussurrasse uma resposta para ele depois do desabafo icônico que ele me deu tantos anos atrás. Nesse mundo alternativo, talvez, era ele escrevendo um texto sobre uma vida mudada na frente da impressora. Eu, se pudesse, voltava e dizia assim:
— E tem certeza que escolheu bem os motivos dos domingos perdidos?)